terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Tamanho de Um Personagem

Recentemente, passando olhos sobre um dos inúmeros e-mails de propaganda que recebo diariamente, deparei-me com o anúncio do lançamento em DVD do filme O Incrível Homem Que Encolheu (1957). Bateu um saudosismo. Esse fazia parte de uma penca de filmes em preto-e-branco, produzidos pelos EUA entre os anos 50s e 60s, e que passavam nas Sessões da Tarde da TV na minha infância. Digamos que esses filmes foram uns tijolinhos que acabaram construindo os alicerces de meu gosto atual pela ficção científica. Enquanto comprava o DVD pela internet, lembrei-me de que o filme era baseado em um romance de Richard Matheson, e que eu tinha, por acaso, o livro ali na estante. Decidi lê-lo, para comparar com o filme que chegaria em breve.
Naquele momento me dei conta de algo perturbador: na verdade, eu nunca havia efetivamente lido nada do Matheson, apesar de meus quilômetros de leitura de FC clássica! E, ainda assim, conhecia muito de sua obra. Eu explico: ainda que não com a frequência nem a badalação de um Stephen King, Richard Matheson é um dos autores de FC com mais textos adaptados para o cinema e a TV. No livro O Incrível Homem Que Encolheu (Editora Novo Século), por exemplo, além do próprio romance que originou o filme que eu adquiri, temos contos como "Pesadelo a 20.000 Pés", transformado duas vezes em episódio da série Twilight Zone, a primeira para a TV (com William Shatner) e a segunda para o cinema (com John Lithgow); "A Caixa", que também virou episódio de Twilight Zone (um dos melhores, na minha opinião) e depois filme de cinema com Cameron Diaz; "Encurralado", transformado em filme homônimo dirigido por Steven Spielberg (Duel – 1971). Todos também conhecem, com certeza, o romance "I Am Legend", ainda que seja em sua primeira adaptação para o cinema em 1971 (The Omega Man, com Charlton Heston), ou na mais recente, com Will Smith (Eu Sou a Lenda).
Fico curioso sobre por que a obra de Matheson é considerada tão compatível com as artes visuais (cinema e TV). Também fico surpreso ao retirar o livro da estante e descobrir, na orelha, que Matheson é reverenciado por autores veteranos de peso, a saber: Stephen King, Ray Bradbury e Dean Koontz. Lendo o livro, descobri a explicação para as duas coisas.
Faz pouco tempo que andei debatendo, aqui pela internet, a respeito da nova geração de autores da ficção científica brasileira (FCB): quem são, quanto valem e o que se pode esperar deles, e também sobre o futuro de nosso subgênero favorito. A meu ver, discutir sobre o quanto a literatura brasileira de FC precisa conter elementos caracteristicamente tupiniquins tem lá sua importância, mas é um fator secundário ou até terciário no momento, tal é a falta de cuidado de nossos jovens escritores, excitados com as facilidades para publicação trazidas pelas vias virtual e
digital a ponto de “publicar” (ou “tornar público”) seus textos prematuramente, sem maiores cuidados de amadurecimento e aperfeiçoamento. Seria como se um grupo de jovens confeiteiros ficasse discutindo a cor do glacê da cobertura, enquanto não são capazes de fazer um bolo cuja massa tenha consistência e sabor decentes.
Nesse aspecto, Richard Matheson deveria ser leitura obrigatória para quem que ser primeiro um “bom escritor – period”, e depois um “bom escritor de FC”.
O Incrível Homem Que Encolheu narra a história de Scott Carey, que durante um passeio de barco é envolvido, em alto mar, por uma misteriosa nuvem de gotículas esverdeadas que lhe provoca um estranho “formigamento” no corpo. Tempos depois, descobre que começou a encolher. Cerca de 3,5 milímetros por dia. Contínua e inexoravelmente. O texto começa quando o personagem conta com aproximados 21 milímetros, ou seja, cerca de uma semana antes de seu suposto total “desaparecimento”. Do porão de casa, onde se encontra confinado, Carey rememora todos os eventos que o levaram até ali, quando sua vida se resume a tentar sobreviver, buscando comida e tentando escapar de uma voraz aranha viúva-negra, que se transforma em sua nêmese e que a cada dia lhe parece maior. Guardadas as quilométricas distâncias, o início do
texto me fez lembrar A Metamorfose, de Kafka, pela situação claustrofóbica e insólita do protagonista.
Quando se assiste o filme O Incrível Homem Que Encolheu, cujo roteiro é assinado pelo próprio Matheson, compreende-se por que esse autor tem sido tão requisitado pelas telas grande e pequena. O que se assiste é uma reprodução fiel do que se vê na tela mental quando se lê o livro. A capacidade descritiva de Matheson, em seu detalhamento e sua fluidez, inclusive nas cenas de ação, são um paraíso para qualquer roteirista. Uma das principais (e inevitáveis) perdas do filme em relação ao livro é a mudança da estrutura literária, de cenas de dura luta pela sobrevivência entremeadas por flashbacks habilmente enxertados, para uma estrutura absolutamente linear em termos de passagem do tempo. Entretanto, mesmo que o filme seja
inferior ao livro, como acontece de hábito nessas adaptações, Matheson conseguiu preservar, mesmo na tela grande, o que faz desse texto uma obra-prima. Sem esse “algo”, O Incrível Homem Que Encolheu não seria muito diferente de dezenas de textos medianos de FCB que abundam em miríades de novas coletâneas organizadas e publicadas ao longo do ano por nossas valentes editoras. Esse “algo” é o que descrevo a seguir, e é um ponto básico a que todo aspirante a escritor deveria prestar especial atenção, seja qualquer um o gênero de literatura em que se aventure.
Richard Matheson é um genial criador de personagens. Por mais absurda e inverossímil que seja a premissa (um homem que encolhe???), cuja explicação “científica” remete às mais simplórias origens dos poderes de super-heróis da Marvel, Scott Carey é tão humano que é capaz de fazer o leitor aceitar sua situação, consentindo com suas dificuldades colossais, compadecendo-se de sua estupefação e desespero crescentes. Carey transita da incredulidade para a revolta, da revolta para a barganha, da barganha para a depressão, como qualquer vítima de uma fatalidade. Só no final, a compreensão e a aceitação são capazes de redimi-lo.
As surpreendentes dificuldades para se escalar uma geladeira como se fosse o Monte Everest em busca de uma caixa de bolachas mofadas, quando habilmente descritas, ainda assim só seguram um texto por um tempo limitado. Em pouco tempo, mesmo o mais estupefato leitor se acostuma com a diferença das escalas. Isso apenas se mantém até o fim, ao longo de cerca de duzentas páginas, porque o leitor é levado a compartilhar com Carey as progressivas e lentas mudanças de sua perspectiva pessoal, não apenas em relação ao mundo circundante, mas em relação a si mesmo.
A princípio, vê com desesperada impotência a perda de sua identidade como “macho alfa”, provedor e pai de família. Enquanto encolhe, sua perda de autoestima cria um abismo cada vez maior entre ele e sua esposa, no que se refere ao sexo. A filha pequena (que não existe no filme), a cada dia se transforma em uma ameaça cada vez maior a sua integridade física. Em sua ingenuidade infantil, vai aos poucos tratando Carey não mais como um pai, mas como um igual, e depois como um brinquedo. Mais tarde, já preso no porão, Carey se vê privado até mesmo de suas ilusões pessoais acerca de sua vida anterior. Por exemplo, quando depois de
muitos dias volta a ver Louise, sua esposa:

“De repente, a enorme figura moveu-se diante da gelatina incolor de suas lágrimas. Aquilo nunca lhe havia ocorrido de forma tão contundente. Por não vê-la, baseando-se apenas em seu próprio físico, pensava nela como alguém em quem podia tocar e abraçar, ainda que soubesse que não era assim. Agora, entendia por completo. E aquele era um cruel peso que esmagava qualquer lembrança.”

A aranha, curiosamente, é usada por Matheson como a síntese de tudo aquilo que o prende, limita e impede de triunfar. Em dado momento, quando a depressão o leva a decidir-se a colocar um fim precoce à própria vida, um sono reparador, provavelmente adoçado por um sonho esquecido (quem de nós nunca viveu algo assim em um momento de grande crise?), faz com que Carey desperte tomado por uma surpreendente vitalidade e disposição para lutar. Ele tem que matar a aranha! Afinal...

“Aquela aranha era imortal. Era algo mais que uma aranha. Era o conjunto de todos os horrores desconhecidos do mundo, fundidos num terror indescritível. Era o conjunto de todas as ansiedades, inseguranças e temores de sua vida na forma de um corpo repugnante e negro como a noite.”

Superados seus obstáculos cada vez maiores, passo a passo, chega o momento final em que Carey sofre a derradeira e definitiva mudança de perspectiva em sua vida, a redentora, a que faz com que o leitor se coloque a seu lado como um igual e vivencie a doce esperança frente ao futuro. Tal conclusão é igualmente destacada no livro e no filme, demonstrando que é exatamente a essência de tudo que Matheson pretendia dizer com a história. Um pequeno trecho, apenas para reflexão:

“Porque o milímetro era um conceito humano, não um conceito da natureza. Para o homem, zero milímetro significa ‘nada’. O zero significava o nada. Mas para a natureza não existia o zero. A existência sucedia-se em intermináveis círculos. Naquele momento, pareceu-lhe muito simples. Nunca desapareceria, porque no universo a não existência carecia de sentido.”

O Incrível Home Que Encolheu funciona porque Scott Carey é um grande personagem. Quanto mais encolhe, maior fica. E se autores como Stephen King, outro grande criador de personagens, declara abertamente sua admiração por Matheson, o círculo fecha e tudo se explica.
Literatura é sobre humanidades. É sobre temores, dúvidas, emoções, alegrias, júbilo, tristezas, esperanças, tudo humano.
Pouco importa se esse humano tem escamas ou tentáculos, se é um gigante ou tem milímetros de estatura. Em cada um desses casos, o escritor tem que dar ao leitor algo a que se agarrar, algo com que se identificar. Esse algo é o elemento humano, é a quantidade de realidade e semelhança com a própria essência que é capaz de encontrar num personagem. Quando encontra isso, o leitor alegremente se rende ao escritor e abraça sua história, pegando carona nas humanidades de personagens que o levam a pensar, sentir e vivenciar coisas que muitas vezes têm, outras vezes nada têm a ver com seu cotidiano e sua vida. E não é justamente isso o que nós, leitores, buscamos em um bom livro?