terça-feira, 2 de abril de 2019

O INFILTRADO



Dia 30 de abril de 1945. Após um flash luminoso, o esquerdista brasileiro se materializa dentro do bunker, ao lado de Adolf Hitler. O Führer quase morre de susto.
     - Quiporreéssa?...
     - Tranquilo, Adolf. Sou um viajante do tempo. Vim do futuro assistir pessoalmente a derrocada do maior líder da extrema-direita que o mundo já viu.
     Hitler olha em volta, assustado.
     - Extrema-direita? Onde? Cadê o maldito?...
     - Não vem com essa, meu caro. É você, lógico.
     Hitler arqueia as sobrancelhas e apoia o polegar direito no próprio peito. Depois vira o rosto meio de lado, estreitando os olhos, mas sem desviá-los do recém-chegado.
     - Hmmmmm, me desculpe, meu rapaz. Lamento se perdeu a viagem, mas deve haver algum engano. Eu sou socialista.
     - RÁ! – é mais um grito que uma risada, e Hitler dá um pulo para trás. – Nem vem com essa! Todos os historiadores sérios do futuro são unânimes em dizer que você é de direita. O nazismo é de extrema-direita! Até o Museu do Holocausto...
     Hitler dá de ombros.
     - Lamento dizer que você vai ter de voltar lá e corrigir isso. Ou mandar um deles aqui para falar comigo pessoalmente.
     Uma bomba explode em algum lugar acima, e filetes de poeira caem do teto.
     - Vai ser difícil você convencer alguém, Adolf. E desconfio que você não vai ter muito tempo pra isso...
     - Veja bem – Hitler caminha de um lado a outro do bunker, adotando um tom professoral – você sabia que a palavra “nazi” é uma abreviatura de "der Nationalsozialistische Deutsche Arbeiters Partei" — Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães? Nacionalistaaaaaaaaa... – ele repete a palavra com voz arrastada. O viajante do tempo esquerdista tupiniquim faz cara de deboche.
     - Isso não quer dizer NADA. Foi só um truque barato que você usou para... enganar alguém.
     - Enganar quem? O povo? Por que eu faria isso se depois adotei uma estratégia econômica socialista? Ou será que eu pretendia causar confusão só pra vocês, no futuro?...
     - Não seja engraçadinho, chucrute. Socialistas são os russos, e você odeia os russos.
     Hitler estufa o peito e adota um tom de discurso agressivo, como faz repetidamente no meme do filme:
     - O socialismo é uma antiga instituição ariana, germânica. Nossos ancestrais alemães mantinham certas terras em comum. Eles cultivavam a ideia do bem comum. O marxismo não tem o direito de se disfarçar de socialismo.
     - Mas vocês deixaram a maioria de suas indústrias em mãos privadas! Isso é puro capitalismo! Seu CAPITALISTA!
     Um sorriso diabólico surge nos cantos dos lábios hitlerianos. Ele se aproxima do esquerdista brazuca e segreda:
     - Essa “propriedade privada” sempre foi apenas nominal. O socialismo, ao contrário do marxismo, não repudia a propriedade privada. O socialismo não envolve negação da personalidade e, ao contrário do marxismo, é patriótico. Se você observar com atenção, era o governo alemão e não o proprietário privado nominal quem decidia o que deveria ser produzido, em qual quantidade, por quais métodos, e a quem seria distribuído, bem como quais preços seriam cobrados e quais salários seriam pagos, e quais dividendos ou outras rendas seria permitido ao proprietário privado nominal receber.
     - Anda não me convenceu – o viajante balança a cabeça, como se tentasse se livrar de um pensamento ruim. – Acho que é um extrema-direita infiltrado.
     - Se fosse assim, deveria ter deixado que o livre mercado tapasse o buraco de nossas contas. Você acha que infraestrutura e rearmamento para entrar numa guerra custa barato? Sabe quantos subsídios precisei distribuir? A única forma que tive para resolver isso foi a mais socialista possível: o controle rigoroso de preços e salários, que decretei em 1936. Foi a forma de tentar segurar a inflação e a escassez de insumos básicos...
     O outro o interrompe com um gesto de desdém.
     - Deixa disso, companheiro. Não sou economista para entender dessas coisas...
     - Sei. Mas mesmo assim está convencido de que eu sou um capitalista de extrema-direita...
     - Sei que a elite econômica enriqueceu debaixo de suas asas...
     - Quem se adequava às ordens do governo. Senão...
     Hitler passa o dedo indicador diante do pescoço rapidamente, da esquerda para a direita. Como se de repente se lembrasse de algo, arregalou os olhos e disse:
     - Aposto que, como socialista, você me diria que o bom socialismo exige o cumprimento das justas reivindicações das classes produtivas pelo Estado...
     - Isso! Justiça social!
     - Pois sempre foi minha bandeira, meu querido. Justiça social com base na raça e na solidariedade. Nós escolhemos nos chamar de Nacional Socialistas. Nós não somos internacionalistas. Nosso socialismo é nacional. Para nós, Estado e raça são uma coisa só!
     O viajante cobre os ouvidos com as duas mãos, como se sentisse dor.
     - Para com isso! É golpe! NÃO PASSARÃO!
     - Socialismo é a ciência de lidar com o bem comum. Comunismo não é socialismo. Marxismo não é socialismo. Os marxistas roubaram o termo e confundiram seu significado. Eu tirarei o socialismo dos socialistas.
     - Não vai fazer nada disso! Você é capitalista! COXINHA!
     - Reveja seus conceitos, amigo, você está enganado...
     - EXTREMA-DIREITA!
     O viajante apanha uma pistola Luger sobre a mesa e dispara um tiro certeiro na cabeça de Adolf Hitler. O barulho atrai Eva Braun, que adentra a sala assustada. Ela ainda pode ver o viajante com o braço em riste, o cano da pistola fumegante, e o Führer no chão com um buraco na cabeça.
     - Você o matou!
     O esquerdista examina a cena por um momento, franze a testa e estica um beiço.
     - Não matei nada. Foi suicídio.
     - Mas... mas...
     - FOI SUICÍDIO!
      


segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

LOBATO, A BOLA DA VEZ



Tempos atrás pipocou nas redes a notícia de que algum “luminar” do governo petista (de triste memória) sugeria que se retirassem as obras de Monteiro Lobato das grades escolares, citando especificamente “Caçadas de Pedrinho”, por serem, segundo eles, racistas. O exemplo contundente eram falas da boneca Emília, depreciativas como de costume, dirigidas a Tia Nastácia. Lembro que escrevi sobre isso na época. Defendia, como me parece o mais razoável para qualquer um que seja capaz de pensar um degrau acima do que é capaz um poodle treinado, que, em vez de banir as obras numa versão light da fogueirona de Bebelplatz, as obras fossem usadas por educadores dentro de seu contexto. Em vez de empurrar o constrangimento para baixo do tapete, explicar às crianças, de forma evidentemente acessível a sua capacidade de entendimento, que existem atitudes e palavras que não devem, ou mais ainda, não podem ser usadas por pessoas boas ou bem-intencionadas. Você pode ir do palavrão comum ao racismo num pulo, e ensinar em vez de alienar.
     Bem, naquele momento o miasma cultural que apelidamos de “lacrosfera” não ficou feliz. E não está feliz de novo agora, quando o assunto volta à baila. Neste ano, quando a obra de Monteiro Lobato cai em domínio público; muito se especula sobre a forma como as publicações de seus livros, inclusive do Sítio do Pica-Pau Amarelo, serão tratadas de agora em diante. E (claro!) começam a pipocar as citações de livros e cartas de Lobato evidenciando seu racismo. Diante dos argumentos de que tais textos precisam ser analisados em contexto, as respostas são, como sempre, histriônicas: “Não existe contexto para racismo! Eu cuspo na cara de Monteiro Lobato! Que seja banido!”
     Pois muito bem: antes de seguir na leitura deste texto, você precisa olhar para dentro de si e certificar-se de sua inclinação no que se refere ao ponto discutido: raciocinar e ajudar no crescimento de si mesmo e dos demais, ou fazer sucesso “causando” no clubinho lacrador. Se for este último caso, sugiro que pare de ler imediatamente. Como eu disse, a partir de agora vamos raciocinar, e isso pode acabar sendo excessivamente cansativo para você. Mas se suas intenções são razoáveis, se está disposto a ler e pensar, vamos adiante.
     A História só se aprende verdadeiramente dentro do contexto dos fatos. Por que Dom Pedro proferiu o Grito do Ipiranga? Estava entediado? Filho rebelde? Havia pressões de grupos políticos interessados na desvinculação com Portugal? Que interesses eram esses? Por que Dom Pedro cedeu a eles?
     Você pode simplesmente acreditar no fato em si de forma religiosa e repetir até a exaustão nas provas da escola, mas estará perdendo a oportunidade de ENTENDER. E não existe nada mais prazeroso, para quem aprende, do que se enxergar como participante da experiência humana. Entender o contexto dá à razão os elementos para elaborar juízos e adquirir o conhecimento real.
     Voltemos então ao racismo de Lobato. Primeira pergunta: ele era de fato racista? Seus textos indicam que sim. Aqui se fecha a porta do cubículo mental do lacrador, e se abre o campo de investigação do ser inteligente: por que ele era racista? Permitam-me citar alguns fatos e personagens históricos, acompanhados de datas entre parênteses, essenciais para comprovar a importante questão da CONTEMPORANEIDADE.
     “Eugenia” é um termo criado em 1883 por Francis Galton (1822-1911), significando "bem nascido". Galton, influenciado pela obra de seu primo Charles Darwin, definiu eugenia como "o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente". Essa linha de pensamento encontrou enorme acolhida nos ambientes intelectuais da Europa e, a partir do século XX, também nos EUA. A eugenia, tal como foi apregoada nesses locais, defendia a “pureza das raças”, e sinalizava a miscigenação como fator de decadência das mesmas. Sabemos como o sequestro dessa miragem por ideologias totalitárias levaria posteriormente a tragédias, cujo exemplo mais conhecido é o nazismo nos anos 30 e 40, mas vamos nos ater a esse início, quando o ser humano ainda não vislumbrava as projeções terríveis que a eugenia poderia acarretar.  Na época, a população inglesa crescia nas classes pobres e diminuía nas classes mais ricas e cultas, e se temia uma "degeneração biológica". Portanto, a eugenia logo se transformou num movimento que angariou inúmeros adeptos entre a esmagadora maioria dos cientistas e principalmente entre a população em geral, na sua época áurea (1870-1933).
     O Brasil, na virada dos séculos XIX/XX, sofria uma enorme influência cultural da Europa, e começava a abrir seus olhos e ouvidos para os EUA, onde, como já dissemos, a eugenia também encontrou solo fértil. É, portanto, perfeitamente natural que nossa intelectualidade (como ainda acontece hoje, e acontecerá sempre) se esforçasse em absorver o que de mais “moderno” viesse do Velho Mundo. O Brasil foi o primeiro país da América do Sul a ter um movimento eugênico organizado. A Sociedade Eugênica de São Paulo foi criada em 1918. Acabou se infiltrando em políticas de Estado voltadas para a saúde pública. Medidas que visavam a impedir a miscigenação, higienismo e eugenismo, se confundiam nesse período da História do Brasil. Entre os intelectuais eugenistas brasileiros que mais se empenharam na organização e divulgação do movimento destacam-se: Belisário Penna (1868-1939), Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Monteiro Lobato (1882-1948), Octávio Domingues (1897-1972), Oliveira Viana (1883-1951) e Renato Kehl (1889-1974).
     Ora, o escritor é o ser que carrega o fardo de retratar em suas obras, de forma voluntária ou não, o pensamento do tempo em que vive. Na França o escritor Jules Verne, em “Cinco Semanas Num Balão” (1863), dava um flagrante exemplo de que, ainda antes do movimento eugenista organizado, o pudor no tratamento da questão racial não fazia parte da preocupação ambiente; em dado momento, quando os personagens retornam ao balão após uma caçada na África, avistam de longe sua aeronave cercada do que acreditam serem nativos negros. Chegando mais perto, percebem que, na verdade, trata-se de um bando de macacos.
      H. P. Lovecraft (1890 – 1937) foi outro autor muito criticado por suas colocações racistas, mas que parecem estar inseridas, em seus textos, com a naturalidade de quem está familiarizado com conceitos eugenistas, e se depara com eles o tempo todo em seu dia a dia. Na Argentina, em seu conto “Yzur”, o escritor Leopoldo Lugones (1874 – 1938) afirma de forma despreocupada que “a juventude, como acontece com os negros, é a fase mais intelectual do macaco”.
     É bem possível que você tenha engolido em seco ao ler essas citações. De fato, para os dias de hoje, não há dúvida de que sejam inconcebíveis. Mas é preciso admitir que considerar Monteiro Lobato “desprezível” por suas colocações eugenistas equivale a considerar desprezível grande parte da humanidade letrada daquela época. Equivale a ridicularizar um cidadão europeu do ano 1400 por ser terraplanista.
     Melhor seria, em vez de proferir impropérios e rolar pelo chão, se debatendo em uma birra ideológica, educar as novas gerações no sentido de que, felizmente, a humanidade EVOLUI. Ao jovem contemporâneo deveria ser dada a chance de entender que ser racista, nos dias de hoje, é pensar como um homem do século XIX. Para o adolescente existem poucas coisas mais ofensivas do que ser considerado “ultrapassado”; portanto, colocar a questão do racismo na obra de Lobato e de tantos outros em contexto abre as portas para uma formação saudável de conceitos, muito além da superficialidade do que é “socialmente aceitável”, mas que continuaria escondido em algum canto obscuro da psicologia que não teve a chance de jogar uma luz, corajosa e clara, sobre o assunto.
     Já retirando a questão de seu contexto, quem é que ganha? Ninguém, com certeza. Bem, há quem ACREDITE que ganha: o “lacrador”, esbravejando de cima de seu caixotinho de madeira feito palanque, naquele momento de glória em que crê estar se colocando como um ser superior a ninguém menos que Monteiro Lobato! É uma ingratidão abjeta, ainda mais por se travestir de “intelectualidade”, pois a maioria dos que hoje erguem seu punho furioso passou sua infância embevecido com as histórias de Emília, Narizinho e Pedrinho, filhos da vaca outrora sagrada, mas que hoje oferecem em sacrifício num holocausto efêmero e egoísta.
     Repetindo e sublinhando, uma das maiores tragédias da humanidade reside em não ser capaz de aprender com a própria História. Desgraçado, ainda mais, aquele que insiste em preencher essa lacuna com o foguetório barulhento, mas pouco efetivo, do catecismo ideológico.  

domingo, 14 de outubro de 2018

O FANTASMA DO NATAL PASSADO, O FANTASMA DO NATAL FUTURO...



O ano de 2015 foi um ano triste para a ficção científica anglofônica. A polarização política entre esquerda e direita, ou Democratas e Republicanos, já se refletia há tempos no mercado literário de FC. A verdade é que a ideologia era apenas a roupagem, a “justificativa” para lotear e dominar um mercado muito lucrativo desse gênero de literatura. Como no campo político, era a esquerda que dominava o status quo. Usando a velha artimanha de “acolher” as reivindicações das diversas minorias, editoras ideologicamente afinadas com o governo Obama começaram a dominar o mercado. Num site de uma dessas editoras, eu mesmo vi, nas guidelines para submissão de originais, a frase “estimulamos a submissão de pessoas pertencentes a grupos minoritários que se sintam discriminados”, ou coisa parecida. Nada contra uma empresa privada ter sua própria orientação ideológica; o problema é que, para prêmios relevantes de alcance nacional dentro da literatura, como o Prêmio Hugo (o mais importante nos EUA), começaram a se formar lobbies para “vitaminar” a indicação dos autores “de esquerda”, trabalhando nos bastidores para boicotar os autores “de direita”.
     Em 2015 veio a reação. Um pequeno grupo “não alinhado” elaborou um protesto sob o nome de “Sad Puppies”, e iniciou um lobby para alavancar os autores “de direita”, pegando o mercado de surpresa e conquistando uma participação expressiva no grupo de finalistas do Prêmio Hugo. O grande erro desse grupo foi, a fim de aumentar o número de votos, aceitar sua associação a outro grupo, denominado “Rabid Puppies”, estes sim, formado por pessoas violentas e de extrema-direita, atuantes no mercado de games para computador. A esquerda, é claro, reuniu os dois grupos num mesmo pacote, e a guerra declarada começou.
     Esse triste episódio, chamado por muitos de “Puppygate”, culminou na cerimônia de entrega do prêmio Hugo 2015. Os acontecimentos são de um nível de baixaria capaz de deixar os produtores de certos programas vespertinos da TV aberta brasileira corados de vergonha. Não vou entrar em detalhes para não perder o foco, mas a conclusão é que foi um momento muito triste e traumático para o mercado literário de ficção científica em língua inglesa. Acompanhei tudo isso de perto, por já ser, naquele tempo, participante da SFWA (Science Fiction & Fantasy Writers Association), a principal associação de escritores do gênero nos EUA, que movimenta mais de um milhão de dólares ao ano apenas promovendo a FC, valor de deixar qualquer autorzinho tupiniquim com os olhos brilhando.
     E aí chegamos ao ponto que justifica essa longa introdução. A forma como a polarização esquerda X direita na política brasileira, nos dias atuais, vem afetando o fandom de literatura fantástica nacional, dentro e fora das redes sociais, me evoca cada vez com mais intensidade o fantasma do Puppygate. Os grupos fechados em torno de uma ideologia – e a hostilidade entre eles – já são uma realidade. As “listas negras” de autores já existem, de lado a lado. Como acompanhei nas listas de bate-papo da SFWA, as agressões mútuas e a quebra de laços entre autores que já conviveram amistosamente já acontecem com frequência, por razões alheias à literatura em torno da qual um amor em comum os unia.
     Há algum tempo atrás, questionei no Facebook um autor nacional acerca do episódio do Hugo 2015. Sabendo de sua orientação esquerdista, minha intenção era colher elementos acerca de sua visão do caso, como observador que era, assim como eu. De forma inesperada (mas nem tanto), ele ficou muito irritado, considerando impertinência meus simples e muito honestos questionamentos, e rompeu seus laços virtuais com minha pessoa. Quem me conhece sabe que estou pouco me lixando para esse tipo de coisa. Sou muito aberto a conhecer gente boa, e tenho uma quantidade suficiente de gente assim no meu círculo de amizades para me importar com esses pobres de espírito que, ainda que se digam “defensores da democracia”, são na vida incapazes de conviver com o contraditório. Mesmo gente muito ilustrada, muito competente, cai vertiginosamente no meu conceito quando age assim. Prefiro omitir, no momento, o rótulo que passo a dedicar a esses elementos. Só o que me irrita, na verdade, é quando essa gente começa a falar mal pelas costas, inclusive caluniando, como se diminuir o novo desafeto servisse para diminuir sua vergonha pela própria incapacidade para o debate. Estou sempre aberto a discutir com argumentos, mas a covardia dos que acusam sem dar a oportunidade da réplica me decepciona e irrita.
     Isso aconteceu com aquele “luminar” que citei acima, quando foi a um podcast falar sobre o episódio dos puppies e ME criticou duramente, dizendo mentiras do tipo “ele mal sabe falar inglês” e “soube dos acontecimentos do Hugo 2015 através de mim”. Claro que não citou meu nome, por saber das possíveis consequências – nem todo covarde é burro -, mas prometeu revelar em off aos interessados. Mas olhem... passou.
     No entanto, esse fantasma reaparece agora, quando um amigo do Facebook manifesta sua tristeza por ter perdido a amizade virtual (coisa doida dos dias atuais) de uma pessoa que respeitava, por razões ideológicas. Simultaneamente, eu mesmo tenho sido vítima, uma vez mais, da mesma atitude covarde dos que se afastam e começam a caluniar pelas costas, estimulados por um outro tipo de pusilânime, aquele que continua fingindo ser seu amigo, mas coloca com alegria lenha na fogueira onde o outro queima um judas com a sua estampa.
     Reforçando, não me interessa nenhuma reaproximação com esse tipo de pobres de espírito. O que me entristece – e preocupa – como autor de ficção científica e fantasia, é que temos no Brasil um mercado já frágil, um preconceito gigantesco do mainstream contra nossa “subliteratura predileta”, e em vez de nos unirmos, mantendo a questão política à parte, nos precipitamos no mesmo erro dos americanos, que, diferente de nós, possuem um navio bem mais forte e capacitado para sobrepujar as tempestades.
     Preocupado com isso, entrei em contato com um dos meus amigos da SFWA, um escritor americano que foi finalista do Hugo 2015 e foi pego no fogo cruzado, sem ter tido a menor participação nas disputas políticas que explodiram. Perguntei a ele, agora que a poeira baixou, se ficaram sequelas do Puppygate no mercado americano, e como estava o ambiente do fandom estadunidense. Postarei abaixo sua resposta original, e em seguida minha tradução. Peço, desde já, desculpas por meus eventuais erros. Afinal, como já disseram por aí, apesar de conversar regularmente com o pessoal da SFWA eu sou o cara que “mal sabe falar inglês”. Então lá vai:
The 2015 Hugo controversy exposed a fracture that's only become more permanent over the past three years. Now there are two opposing camps, and they don't talk to one another. The "establishment" blacklists any authors identified as Christian, Conservative and/or Republican. The dissidents have their own networks of publishers and outlets. It's like apartheid in South Africa.
I'm not an active writer any more. After working as managing editor at the local newspaper for three years, I had the opportunity to buy out the owner at the start of this year. So I am self-employed, and loving it. It took such a stroke of luck as a sign from God that I have been wasting my time writing speculative fiction.
I don't miss it at all, and now I'm ashamed I had anything to do with those assholes and heathens in the past. I'm much happier. If I ever write anything in the future, I will use a pen name.
I can't imagine Brazil would ever get as messed up as the US. We suffer because of our prosperity. There are a lot of people who are only Americans because they want to make a fast buck. They are stupid, greedy, and have no love for their country. I'm sure Brazilians have a greater sense of patriotism and self-esteem. It would be hard not to.
Thankfully I live in Texas, where the traditional values of the U.S. still hold sway. So its more comfortable.
The establish of s-f, like the establishment in the nation as a whole, are sanctimonious snobs who sneer at anyone who still believes in God and Country. S-F is just a lot farther along. I doubt it could ever get that bad in Brazil.
Sorry for such a rant. I grew up loving science fiction. Now I don't even read it any more. Too many bad associations.
You struck a nerve there, I don't even THINK about writing science fiction any more. I so much enjoy owning and operating my own newspaper.
Tradução:
“A controvérsia envolvendo o Hugo 2015 expôs uma ruptura que só se tornou mais permanente ao longo dos últimos três anos. Agora há dois grupos opositores, que não falam um com o outro. O “sistema” cria uma lista negra de quaisquer autores identificados como cristãos, conservadores e/ou Republicanos. Os dissidentes têm sua própria rede de editores e comercialização. É semelhante ao Apartheid na África do Sul.
Não sou mais um escritor ativo. Após trabalhar como editor do jornal local por três anos, tive a oportunidade de comprar o jornal no início deste ano.  Então sou autônomo, e estou adorando. Considero um golpe de sorte, e um sinal de Deus de que estava desperdiçando meu tempo escrevendo ficção especulativa.
Não sinto a menor falta, e agora me envergonho de ter tido algo a ver com aqueles idiotas e pagãos no passado. Estou muito mais feliz. Se eu por acaso voltar a escrever algo no futuro, vou usar pseudônimo.
Não consigo imaginar que o Brasil chegue a ficar arruinado como os Estados Unidos. Sofremos por causa da nossa prosperidade. Há muita gente que só é Americana porque quer fazer um pé-de-meia rápido. São estúpidos, gananciosos e não amam seu país. Tenho certeza de que os brasileiros têm um grande senso de patriotismo e autoestima. Seria difícil não terem.
Felizmente vivo no Texas, onde os valores tradicionais dos Estados Unidos ainda têm peso. Então é mais confortável.
O “sistema” da ficção científica, como o do país como um todo, é composto de esnobes hipócritas que zombam de qualquer um que ainda creia em Deus ou no país. A ficção científica apenas foi ainda mais longe. Eu duvido que possa ficar tão ruim no Brasil.
Perdoe meu discurso inflamado. Eu cresci amando a ficção científica. Agora eu nem leio mais. Muitas associações ruins.
Você cutucou um nervinho aí, eu sequer PENSO mais em escrever ficção científica. Adoro gerenciar e atuar no meu próprio jornal.”
     Como se vê, até lá a briga ideológica causou suas baixas. É trágico ver um bom escritor, finalista do Hugo, dizer essas palavras, não? Não penso que eu precise comentar muito mais. Acho que já cumpri meu papel, mostrando o que vislumbro para o futuro ao seguirmos o rumo que tomamos atualmente. Aprender com os erros do passado – mesmo os alheios – costuma ser um conselho sábio para os que não querem passar pelos mesmos sofrimentos.
     A visão do meu amigo americano a respeito de nós, brasileiros, me envergonha um pouco. Temo que, no final das contas, ele esteja nos superestimando. Fica a minha certeza de que pensamentos e ideologias desconhecem idiomas, e aqueles que os acolhem, em qualquer lugar do mundo, estão fadados a pagar o mesmo preço. Só que, dependendo da capacidade de resiliência de cada um, o fim pode acabar sendo trágico em alguns casos. Ouviu, Brasil?

terça-feira, 25 de julho de 2017

A DANÇA DOS LEITORES


Atendendo a um desejo mais ou menos antigo, iniciei hoje, no Dia do Escritor, a leitura de “A Dança da Morte” (The Stand), do mestre Stephen King. Este romance, um dos seus mais celebrados de todos os tempos dentro da obra do autor, tem uma peculiaridade: publicado originalmente em 1978, teve uma nova versão lançada em 1990. Explico: o calhamaço original estourou o orçamento do departamento de contabilidade da editora de King, e ele teve de cortar quatrocentas páginas do manuscrito original, para manter o preço de capa nos limites do que a editora considerava realizável. Na versão de 1990, que sai no Brasil pela editora “Suma de Letras”, temos a versão integral da história, com alguns cortes ainda, é verdade, mas estes realizados pelo próprio autor, exercendo seu sagrado direito.
     A obra se divide em três partes: na primeira, um erro por uma fração de segundo, cometido pelo Departamento de Defesa dos EUA, libera na atmosfera terrestre um vírus superultramegahipermortal, que rapidamente extermina 99% da população do mundo. Na segunda parte acompanhamos a saga dos 1% sobreviventes, que se dividem em dois grupos: um organizado numa sociedade pacífica, que procura preservar as bases da civilização, e outro organizado em torno de um tirano sem o menor escrúpulo quanto à volta à barbárie. A terceira parte mostrará o confronto final entre as duas forças em oposição. Se você considerar o habitual estilo “recheado” de King, estamos, então, diante de um volume enorme de história para contar. Eis porque minha edição de “A Dança da Morte” tem nada menos que 1247 páginas!
     Fazia tempo que eu não circulava por aí, até onde me lembro, com um livro desse tamanho debaixo do braço. E isso deu margem a uma vivência muito interessante. Acostumadas a me ver sempre com um livro à mão, dessa vez as pessoas reagiam à minha associação ao pequeno jumbo de King de três formas diferentes, o que me deu a base para classificar três tipos de posturas frente à literatura.
     O primeiro tipo, felizmente o menos numeroso, é o das pessoas que reagem com indiferença. Sinto tristeza quando alguém se depara com um livro desses e seu rosto não esboça a menor reação, para o bem ou para o mal. Um apenas me disse: “que livro é esse?” Um tom mais de curiosidade que de interesse. Esses tipos eu “corto” rapidamente. No caso, estando presente uma dupla de acadêmicos de medicina, respondi: “É que tenho o hábito de jogar livros na cabeça de acadêmicos que fazem as coisas errado. Como não estava adiantando muito, escolhi este.” Todo mundo ri, e assunto encerrado. Próximo.
     O segundo tipo é o das pessoas que têm interesse ou gosto pela leitura. Nesses, as reações são variadas, mas convergem num mesmo sentido: “Nuh, esse é grande, hein!”; “Que calhamaço, deixa eu ver!”; “Agora você caprichou!” Um sorriso de cumplicidade e reconhecimento, em todos os casos. Gente que se vê ali, no seu lugar, carregando o fardo debaixo do braço, e não se assusta com isso.
     E tem o terceiro tipo, das pessoas que não gostam de ler. Nesses a reação, com pouquíssimas variações, é idêntica. Um desses se deparou com meu livro sobre um móvel, deu uma cambaleada, e exclamou: “Cacete, você está lendo esse?! Quanto tempo demora para ler um troço desses?” Levo na esportiva e digo: “Estou no começo, mas posso te emprestar depois.” E ele, torcendo o nariz: “Se eu começo a ler um livro desse tamanho, largo na terceira página.” Fico refletindo sobre essa reação: a preocupação depressiva com a extensão do livro, com a demora da leitura. É como se o sujeito se visse na iminência de iniciar uma longa viagem, mas desanimasse nocauteado, já no princípio da caminhada, pela perspectiva do tempo que perderá na vida até atingir o ponto de chegada. O interessante é que para nós, que amamos os livros, a perspectiva é oposta: o final da viagem é um bônus desejado, mas o melhor de tudo é o durante, é a experiência vivida no trajeto, são as emoções experimentadas a cada paisagem, as surpresas por trás de cada curva do caminho. A experiência é a viagem, não seu fim. Se o livro é muito bom, então, mais do que chegar ao final, o que você deseja é que esse final esteja o mais longe possível!
     Eu compreendo, entretanto, as razões dessa postura do terceiro grupo. Sou parte de uma geração que cresceu, com honrosas exceções, enxergando o ato de ler como um castigo. Não é à toa. Quando crianças, aqueles de nós que não foram salvos por um Monteiro Lobato ou uma Lucia Machado de Almeida, cresceram sendo obrigados a ler, na escola, os livros dos nossos autores clássicos: José de Alencar. Machado de Assis. Guimarães Rosa. Gigantes, melhores entre os melhores... mas NÃO para crianças de nove, dez, onze anos! E, ao final da leitura, adivinhe: uma prova, valendo nota, para apurar se você leu mesmo o livro, prestando atenção nas nuances dúbias dos olhos de Capitu. Quando meu colega me pergunta “quanto tempo você leva para ler isso?”, o que o martiriza é a duração do sofrimento, a infinitude do tédio e dos trabalhos forçados até o terror da prova final. Por isso ele jamais entenderá quando – e se – eu responder: “Cara, isso não tem a MENOR importância!”
     Ler por prazer é uma descoberta preciosa que, espero, há de se tornar cada vez mais comum nos tempos futuros, já que hoje estamos diante de uma nova geração que tem, a seu dispor, uma literatura mais adequada aos gostos e à compreensão de sua faixa etária. Dispõe também, felizmente, em casa ou na escola, ou até na mídia que estimula incondicionalmente o consumo, exemplos e fontes de estímulo para buscarem essa literatura.
     No prefácio de “Dança da Morte”, nos ensina o mestre Stephen King:
     “Quando me perguntam ‘Como você escreve?’, invariavelmente respondo: ‘Uma palavra de cada vez’, e a resposta é invariavelmente descartada. Mas é realmente assim. Soa simples demais para ser verdade, mas pense na Grande Muralha da China: foi uma pedra de cada vez, cara. É isso aí. Uma pedra de cada vez. Mas já li que se pode ver aquela filha da mãe do espaço sem auxílio de um telescópio.”   

     Ler, por própria vontade, um livro de 1247 páginas, não é nenhuma coisa de doido, se você parar de pensar no ponto final da última página. Ler por prazer é como King descreve: uma palavra de cada vez; uma página após a outra; um livro depois do anterior. E a derradeira estrela do universo é o seu limite. 

quinta-feira, 13 de abril de 2017

A DITADURA DA HISTERIA











A histeria é uma doença psiquiátrica já consagrada nos anais da medicina. Manifesta-se através de duas grandes vertentes de sinais e sintomas: os de ordem psicossomática e os distúrbios psicoemocionais. A medicina tradicional tem se concentrado nas manifestações mais “exuberantes” da doença, como convulsões, desmaios e perda de memória. Até cegueira e surdez são manifestações recorrentes. Entretanto, existe outra vertente de sinais que, talvez por sua menor repercussão nas atividades diárias do indivíduo, tem sido relegada a segundo plano. O histérico tem uma forte tendência a ser o centro das atenções. É expert em manipular ou confundir a realidade e teatralizar os conflitos. Reage às pessoas e situações com grandes arroubos emocionais caricatos, muitas vezes buscando evocar a compaixão alheia.  Não sabe bem o que quer. Guia-se mais por intuições e impressões repentinas do que por juízos serenos e bem fundamentados. Você deve estar aí, se lembrado de alguém que conhece, e que se enquadra pelo menos parcialmente nessa descrição. Se é usuário das redes sociais, mais ainda...
     Para compreender o sentido deste artigo você precisa conhecer, também, o SJW (Social Justice Warrior). Esse personagem, batizado nos embates ideológicos americanos, é a arma de destruição em massa predileta da ideologia esquerdista. No jogo do xadrez ideológico, o SJW é o peão: pouco importante, sacrificável, limitado, mas que procura assumir uma aparência de relevância graças ao elevado número de indivíduos que compõe a hoste. O SJW é o defensor incondicional das minorias e dos “discriminados”; entrará, em nome destes, em brigas que não são suas com um vigor notável, transformando cada contenda em algo pessoal. Muitas vezes inventará histórias (apelidadas de “fanfiction”) para causar uma impressão de realidade no que se refere a teorias e conceitos que só ele é capaz de admitir. Pela causa, tudo vale. Será intenso, emotivo. Repetirá, usando os números do bando, uma falácia estapafúrdia tantas vezes que ela começará a ser familiar ao ouvido, e adquirir uma perigosa aparência de verdade. Seu critério normalmente é marcado por uma flagrante incoerência: um fato, uma atitude, quando serve a nossa causa é de valor, é lícito; caso contrário, será execrado impiedosamente. Reconheceu? Exatamente! O SJW tem uma elevada propensão à histeria, o que faz dele o peão ideal no tabuleiro de xadrez da ideologia de esquerda.
     Nesta semana, ganhou as redes sociais a imagem (reproduzida acima) de um grupo de estudantes (masculinos) de Medicina, de jaleco, posando para a foto de calças arriadas, fazendo com as mãos um sinal que, entre outras interpretações, simboliza uma vagina. Simultaneamente, surgiu uma foto semelhante de outra faculdade médica, só que desta vez mostrando estudantes do sexo feminino em atitude idêntica. Caso você se dê ao trabalho de pesquisar, vai descobrir que esse tipo de coisa não é novidade. É uma espécie de “piada interna” dos alunos de algumas instituições de ensino de Medicina, que se repete há anos. A diferença, agora, é que as fotos caíram nas redes sociais. E as redes sociais são, hoje em dia, o campo de caça predileto dos SJW.
     As manifestações na rede foram assustadoras, surpreendentes, por não serem, na maioria das vezes, frutos de “juízos serenos e bem fundamentados”. Logicamente, esse tipo de arroubo emocional encontra eco, com facilidade, na ignorância (no bom sentido de falta do conhecimento) e no temor.
     Em resumo, os tais alunos foram instantaneamente promovidos a médicos ou, segundo muitos, a “ginecologistas”, sem precisarem sequer esperar pela colação de grau ou sofrerem as agruras de uma penosa residência de Ginecologia e Obstetrícia. A pose desrespeitosa seria uma “apologia ao estupro”. Logo pipocam nas redes os “testemunhos” de pessoas que teriam sido vítimas de tentativa de abuso sexual por parte de profissionais médicos, e o clima passa a ser de pânico: “Ah, meu Deus, o que será de mim agora, não se pode confiar nessa pérfida categoria profissional!” Observe a escalada do absurdo. Como fogo em mato seco, é evidente que contribui para isso, aparte da má intenção e da histeria ambiente, ansiosas por se manifestarem, outra característica deplorável das redes sociais: o descompromisso e a irresponsabilidade para com a imagem e o conceito alheios, a insensibilidade, a atitude inconsequente quanto ao dano que palavras mal direcionadas podem causar nas vidas de gente inocente. Isso caracteriza as discussões nas redes sociais com elevada frequência, e é um meio de cultura fértil quando explorado por aqueles de má intenção.
     Caso você conseguisse se livrar de tudo isso, que já tomou o ambiente virtual de forma instantânea e inescapável como uma espécie de “ditadura da histeria”, poderia avaliar o caso nas dimensões que realmente tem. Poderia avaliar que, mesmo sendo uma brincadeira de estudantes, tratou-se de um ato altamente reprovável em termos éticos. Nenhum médico ou estudante tem o direito de expor negativamente sua categoria profissional. Sobretudo hoje (e voltaremos a isso), quando a categoria médica é vítima de uma campanha orquestrada de difamação por parte, inclusive, do poder constituído, a proteção da ética médica, e da relação do profissional com o paciente, deveriam ser invioláveis. Uma atitude assim, inconsequente, irresponsável, é inaceitável em alunos quase-formandos. Poderia se discutir como as universidades têm focado excessivamente na formação técnica, pela própria pressão do mercado, e negligenciado em relação à formação ética dos futuros médicos. Tudo isso PODERIA ter sido. Enquanto as discussões focalizam a imbecilidade galopante da “apologia ao estupro”, não se chegará, em termos práticos, do nada ao lugar nenhum.
     Curiosamente, a fotografia das moças de calças arriadas é escrupulosamente ignorada pelos SJW. É assombrosamente patético como, enquanto a foto “masculina” significa uma apologia ao estupro, a foto “feminina”, que para um juízo sensato é absolutamente igual, se transforma no máximo em um símbolo de “empoderamento feminino”. Pode rir, leitor, antes que seja obrigado a ouvir o clássico e previsível “meu corpo, minhas regras”.
     Quanto à falta de conhecimento, que leva ao temor, essa fantasia negativa que sorrateiramente se joga sobre o médico ginecologista ganha força nesse ambiente de insanidade histérica. Nesse microambiente viciado, onde proliferam os testemunhos de abuso sexual e o fanfiction, a insegurança quanto à confiabilidade do profissional ganha corpo. Mas... Vamos a dados concretos?
     Um estudo realizado pela USP em 2015 (http://www.usp.br/agen/wp-content/uploads/DemografiaMedica30nov2015.pdf) revela que, dentre as especialidades médicas, a ginecologia ocupa o quarto lugar em número de profissionais, com mais de 28.000 indivíduos. A média de idade dentro da especialidade é de 49 anos, e 53% desses profissionais pertencem ao sexo feminino. Não é preciso ir muito longe para entender que, na frieza dos dados estatísticos, usar uma foto de estudantes cabeças-de-bagre para demonizar toda uma categoria profissional é algo simplesmente absurdo. É inquestionável que em todo tipo de profissão existem os de mau-caráter. A Medicina não é exceção. No entanto, a despeito dos casos que, por sua mesma excepcionalidade, ganham as manchetes dos jornais, como os Roger Abdelmassih da vida, ainda que se considerem os casos verdadeiros de subnotificação que caracterizam esse tipo de abuso, estamos falando de um universo ínfimo, minúsculo, dentro do cenário global. Repetimos: longe de subestimar a importância desses casos deploráveis, consideramos que só uma avaliação realista dos mesmos pode conduzir a uma análise e a medidas eficazes, efetivas, para seu combate.
     Mas a quem interessa isso? Uma eventual campanha deliberada de difamação da classe médica não seria uma avaliação “histérica” de minha parte?
     Em 2014, o governo federal do PT lançou o Programa Mais Médicos. Segundo as justificativas explícitas para esse programa, afirmava o governo que o caos da saúde no Brasil era responsabilidade da classe médica: o médico brasileiro se recusava a ir para as áreas desassistidas do interior do Brasil; só pensando em dinheiro, o médico brasileiro, diziam muitos, tinha “nojo de pegar em pobre”. Portanto, caberia ao governo trazer 13.000 “médicos” cubanos para atender a essa população carente e abandonada, a R$10.000,00/mês por cabeça. Demais está repetir aqui o que eu e outros tratamos em vários artigos, revelando esse golpe sujo, canalha, de lavagem de dinheiro do PT para a eleição de 2014; demais estaria agora discorrer sobre como a maioria dos cubanos sequer eram médicos de verdade, como a maioria deles permaneceu (até hoje) nas proximidades dos grandes centros, deixando os sertões ainda desprovidos, uma vez que hoje, com o PT desmascarado e destronado e sua ferramenta Odebrecht enquadrada, a “casa caiu” e o próprio Programa acaba de ser cancelado. Entretanto, a mão-de-obra fácil e barata dos SJW não poderia ser desperdiçada, ainda mais se sua ideologia gramscista tem como princípio básico substituir as elites intelectuais do país por agentes infiltrados. Se você achava que o projeto morreu com o fim do Mais Médicos, tome como exemplo o artigo de Renato Rovai, publicado em 11/4/17 na revista “Forum”, tradicional e conhecido veículo de infiltração esquerdista. O título: “A imbecilidade dos médicos está se tornando insuperável e insuportável”.
     Eliminando qualquer hipótese de falta de intencionalidade, o articulista começa fazendo uma afirmação categórica: “Generalização é sempre algo bestial. Por isso, adianto, não quero generalizar aqui.” Segue uma fotografia dos infelizes alunos de calças arriadas, e então o artigo se limita a um discurso de ódio direcionado à classe médica como um todo: um bando de idiotas que se arvoram em uma casta especial; que acredita que pode tudo, incluindo todos os tipos de desrespeito aos direitos humanos; a categoria mais difícil para lidar; fraudadores; corporativistas; desumanos e irresponsáveis; filhinhos de papai que só pensam em dinheiro; corruptos; e claro, esses são a regra, e não a exceção. Apresentar provas, como caberia a qualquer acusador com um pingo de honestidade? Ele simplesmente recomenda que o leitor recorra ao “Google”, e à “enorme quantidade de artigos” que comprovariam suas palavras covardes e mentirosas. Citei apenas alguns exemplos do discurso sujo da esquerda tupiniquim estampados nesse artigo, e em nenhum momento, por mais que procure, você encontrará qualquer conexão dele com o episódio retratado na famigerada fotografia, que supostamente seria o assunto principal. Até o famigerado “Marcos do BBB”, que foi excluído do reality show global após um questionável episódio de agressão contra sua “ficante” (mereceria outro artigo), é citado nesse artigo deplorável como o avatar de um típico “cirurgião plástico”, ainda que seus atos em nenhum momento tenham qualquer, nem de longe, relação com sua profissão.

     Desnudada assim, essa situação absurda, potencializada pela ditadura histérica das redes sociais, pode parecer ridícula, inacreditável até. No entanto, caso você não seja um habitué, experimente dar uma espiada nessa insanidade explicitada no Facebook. Apenas, antes, um conselho médico: vá preparado, vacine-se com um pouquinho de atenção e bom senso. Existe uma legião de SJW que fazem a moderna medicina desconfiar de que a estupidez, assim como a histeria, são contagiosas.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

VADE CUM PAPA...


Esse aí, de calças vermelhas e cavanhaque diferentão, é o Max Mallmann. Fiel a seu estilo fora da Curva de Gauss, o Max esperou passar o "hype" do Dia de Finados e só depois, quando ninguém mais estava pensando nisso, pulou para o lado de lá da Matrix. Peste.

Dentre os ases da literatura fantástica nacional, Max foi um "top gun". Dentre suas obras literárias, destaco "Síndrome de Quimera", que lhe abriu as portas da editora Rocco, "Zigurate", e os dois primeiros volumes da agora inacabada trilogia de ficção histórica, "O Centésimo em Roma" e "As Mil Mortes de César", contando as desventuras de Desiderius Dolens, uma espécie de Groo romano deprimido. Na TV, Max participou como roteirista de diversas produções da Globo, como a novela "Coração de Estudante" e as séries "Carga Pesada", "A Grande Família" e "Chapa Quente".
O Max nunca contava vantagem desse sucesso todo. Não. Esse gaúcho exilado no Rio de Janeiro tinha um jeitão bem mineiro: come-quieto, trabalhando em silêncio. Seu tom de voz, sempre baixo, impunha o silêncio ao redor, porque todo mundo queria ouvir o que ele tinha a dizer. Sua risada meio soluçada, risada de gente meio doida, era um triunfo para mim, porque eu considero uma façanha fazer rir um cara com o senso de humor ácido, inteligente e certeiro como o dele. Como bem lembrou o Eduardo Torres, eu também nunca vi o Max levantar a voz agressivamente ou destratar ninguém; pelo contrário, já o vi escutar atentamente e oferecer palavras de conforto a pessoas que sofriam. 
Arrumou lá uma doença como ele, fora da Curva de Gauss, e brigou contra ela por dois anos com uma dignidade assombrosa. Mesmo. Em muitos momentos nem a porcaria da doença escapou de seu humor corrosivo, o que nos dava algum conforto, porque passava a ideia de que ele estava bem. Max, em sua generosa e irredutível gentileza, não queria incomodar. 
Eu me identificava muito com seu processo criativo na literatura, conversamos bastante sobre isso, o que me dava (e dá) a esperança de, um dia, ser uma fera das letras como ele foi. Max deixa um projeto de minissérie na Globo em andamento, uma ideia genial que merecia MUITO virar realidade, além do volume final da saga de Dolens, no qual trabalhava, e acredito que não tenha terminado. Mas todo escritor devia partir assim: deixando uma obra em andamento, assim como a pilha de livros que jamais vai conseguir terminar de ler. Isso dá a sensação de continuidade, de eternidade. Eternidade que nosso Max Mallmann conquistou, haja visto a consternação que sua partida precoce está causando no fandom, e o pedação da sua vida que, na forma de atos e palavras de bem, ele deixou, vivos, nas vidas de todos nós que tivemos o privilégio de conviver com ele. 
Dentre as tantas fotos que os amigos estão postando para homenageá-lo no Facebook, escolhi esta, do amigo Marcelo Augusto Galvão, porque ilustra bem como Max Mallmann viveu, e tenho certeza de que é como ele gostaria de nos ver agora: amizade, alegria, papos inteligentes, literatura na veia. 
Não sei se, a partir de hoje, é o Céu que fica mais bagunçado, ou o Inferno que fica mais doce. Mas onde estiver, irmão, permita-me parafrasear seu personagem mais carismático em minha despedida: "Vade cum Papa, Max."

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

RUMO À ETERNIDADE


     Se você nunca ouviu falar de Harlan Ellison, ou não gosta de ficção científica ou passou os últimos 50 anos preso em Talos IV. Trata-se de um dos mais importantes escritores de ficção científica e terror, de sua geração e de todas mais. Basta dizer que Ellison coleciona, além de diversos outros prêmios de destaque, nada menos que onze prêmios Hugo e cinco Nebula, as duas mais prestigiosas premiações da literatura de FC mundial. OK, mas você prefere histórias em quadrinhos de super-herois, certo? Saiba, então, que foi Ellison quem criou a saga de Jarella, uma das coadjuvantes mais marcantes das HQs do Incrível Hulk da Marvel. Entre as obras mais famosas desse escritor fabuloso, que, se não me engano, jamais havia sido publicado no Brasil, estão o conto  “I Have No Mouth, and I Must Scream” (1967) e a novela  "A Boy and His Dog" (1969), transformada em filme em 1975. Isso sem falar nos inúmeros roteiros para telesséries como Babylon 5, Outer Limits, A Noviça Voadora, O Homem da U.N.C.L.E., Jornada nas Estrelas, etc.
     É sobre esta última que queremos falar. Percebeu quando eu disse, acima, que Ellison jamais “havia sido” publicado por aqui? Bem, isso acaba de mudar de uma forma, para mim, inesperada. A editora Mythos lançou, neste mês de outubro de 2016, a versão em quadrinhos de “The City on the Edge of Forever” (Cidade à Beira da Eternidade), uma adaptação fiel do roteiro original de Harlan Ellison para aquele que é, na opinião da maioria dos fãs e na minha própria, o melhor dos 79 episódios da série clássica de Jornada nas Estrelas, um dos dois únicos episódios da franquia a ganharem um prêmio Hugo.  
     Um pouco de história: apesar da qualidade habitual do texto de Ellison, alguns elementos do roteiro desagradaram a Gene Roddenberry, criador de Jornada nas Estrelas, como, por exemplo, uma situação de comércio de drogas ilícitas a bordo da Enterprise. Roddenberry modificou extensamente o texto original até que se transformasse na versão que foi ao ar. Isso levou ao rompimento da relação entre os dois autores, e Ellison entrou para a seleta lista de desafetos de Gene, de quem passou a ser um crítico feroz. Curiosamente, assim como a versão adaptada de Roddenberry ganhou o Hugo em 1968, o roteiro original de Harlan Ellison ganhou, no mesmo ano, o Writers Guild Awards para melhor drama episódico na televisão. Tanto talento junto não merecia cair no esquecimento. Assim como o episódio da TV encontra-se à disposição em inglês e também aqui no Brasil, em DVD, blue-ray e, ocasionalmente, na TV paga, o roteiro de Ellison foi publicado nos EUA, como livro, em 1976. A adaptação em quadrinhos viu a luz apenas em 2014, pelas mãos habilidosas de Scott Tipton & David Tipton (roteiro adaptado) e J.K. Woodward (arte). Como eu disse, para meu total encantamento, a versão em português acaba de chegar ao Brasil, e às minhas mãos.
     Esta edição luxuosa e bem cuidada, em capa dura, traz, além da história, uma introdução e um posfácio escritos pelo próprio Ellison. Na parte inicial, para aguçar ainda mais nossa curiosidade, o escritor faz duas sinceras revelações sobre si mesmo: primeiro, que é uma pessoa muito difícil de se conviver; segundo, seu mais absoluto deslumbramento e emoção com relação a essa maravilhosa graphic novel, que, diferentemente do texto de Roddenberry, ele considera de uma fidelidade total ao roteiro que escreveu. Em suas palavras: “É a cidade à beira da eternidade da minha imaginação”.
     Ao final do livro, alguns extras: as capas originais das cinco edições que depois dariam origem a essa versão encadernada; uma demonstração detalhada do trabalho do artista na confecção de uma página, dos primeiros esboços a lápis até a versão colorida final; uma série muito legal de “easter eggs”, comentados pelos dois irmãos roteiristas.
     Resta-me falar sobre a história, pontuando alguns comentários sobre as diferenças entre as versões de Roddenberry e Ellison. O roteiro básico da trama: um tripulante da espaçonave Enterprise penetra em um portal do tempo, indo para na Terra, na Nova York do ano de 1930 (Grande Depressão). Ele modifica a História de forma a alterar todo o futuro. O capitão Kirk e o Sr. Spock seguem no seu encalço pela mesma via, com o objetivo de restaurar o fluxo do tempo ao que era originalmente.
     A famigerada situação do tráfico de drogas surge logo no início da graphic, pelas mãos de um tripulante chamado Beckwith. Embora Roddenberry tenha excluído esse elemento da história, possivelmente por considerá-lo inadequado para os padrões da TV dos anos 60s, penso que seria um adendo enriquecedor, caso a produção da série ocorresse nos dias atuais. Ellison, nas palavras do capitão Kirk em seu diário, retrata uma situação muito plausível que a franquia de TV jamais explorou em nenhuma de suas séries. Na TV, embora a missão das naves Enterprise seja sempre mergulhar no espaço desbravando o desconhecido, todos os tripulantes se comportam como se estivessem convivendo em seus próprios lares, ou num trabalho rotineiro na Terra. Desde os primórdios da exploração espacial pela humanidade, porém, sabemos que o espaço sideral desconhecido sempre deixou marcas profundas, para o bem ou para o mal, naqueles que se aventuraram por ele. Vários astronautas do mundo real atestam isso. Na versão brasileira da música “Starman” (David Bowie), gravada pela banda Nenhum de Nós (“Astronauta de Mármore”), o personagem diz: “Desculpe, estranho, eu voltei mais puro do céu”. Na graphic novel, Kirk diz em seu diário: “Quando deixamos a Terra, cada um dos 450 tripulantes da Enterprise foi considerado estável. Mas já se passaram dois anos... Dois anos de forte pressão. Realizamos sondagens mentais com frequência, mas sabemos que alguns estão mudados. Inclusive alguns podem ter se estragado: só descobriremos quando a rachadura ficar aparente...” Uma forma como esse estresse se manifesta na tripulação é a busca pelo alívio através das drogas; e, como toda demanda logo encontra uma oferta, surge o traficante Beckwith. Ponto para a HQ.
     Descoberto, o meliante se refugia no planeta abaixo, através do teletransporte. Enquanto na TV a nave era sacudida por “ondas cronais” no espaço que a atraíram ao planeta, na HQ trata-se de uma radiação proveniente do mesmo que faz os cronômetros correrem em reverso. Como sabemos, na TV Beckwith foi substituído pelo Dr. McCoy, após sofrer um acidente que o fez mergulhar num surto paranoico. Essa mudança no roteiro concentrou a espinha dorsal dramática da história na santíssima trindade Kirk/Spock/McCoy, o que vai convergir para um clímax de elevada carga dramática no fim do episódio. A meu ver, ponto para a TV.
      Kirk organiza seu grupo avançado e parte à procura de Beckwith; em vez de Uhura, a HQ traz uma ordenança Janice Rand muito mais ativa e determinada, como nunca se viu na série.
     O grupo se depara com um planeta totalmente morto e, seguindo as pegadas de Beckwith pelo deserto, chega a uma cordilheira de picos altos e escarpados, sobre a qual se veem as ruínas de uma enorme cidade. Kirk chama as ruínas de “uma cidade à beira da eternidade”, dando uma conotação totalmente diferente ao título da história em relação àquela imaginada por mim e por você.
     Em vez do conhecido arco vazado da TV, o “Guardião” da HQ é um grupo de seis velhos barbados, etéreos e fantasmagóricos, que a meu ver falam muito mais do que deveriam, às vezes na forma de “charadas”, as quais levarão Kirk e Spock, posteriormente, a identificar o “ponto focal” do tempo a ser corrigido. Achei as “dicas” desses guardiões forçadas, e me agradou mais a forma como, na TV, Spock chega a suas deduções resgatando imagens no fluxo do tempo através de sua “gambiarra”. Ponto para a TV, mas com uma ressalva: nunca engoli bem aquela traquitana construída com peças de rádio de 1930. Na HQ, Spock usa um tricorder funcionando no limite de sobrecarga, o que me pareceu mais plausível. Nesse aspecto, ponto para a HQ.
     Uma diferença importante, depois que o personagem fugitivo mergulha no fluxo do tempo: na TV, a Enterprise simplesmente desaparece, como se nunca tivesse existido por causa das alterações na História; na HQ, Kirk e o grupo avançado retornam à órbita, para bordo de uma nave chamada Condor, tripulada por piratas sanguinários. Enquanto Kirk e Spock partem em sua missão de resgate, o resto do grupo avançado fica sitiado na sala do teletransporte, prestes a ser invadida pelos bandidos. A TV poderia ter explorado esse elemento dramático de forma espetacular. Ponto para a HQ.
     Penso que tanto a versão da TV quanto a da HQ perdem um pouco em ritmo, de formas adequadas a sua própria mídia: na TV, a direção abusa escandalosamente dos closes nas fisionomias dos personagens, sobretudo nos momentos de tensão. Além disso, a movimentação em cena, muitas vezes, é lenta e burocrática, como quando McCoy surge, no planeta, de trás das pedras, ou quando os mendigos do abrigo de Edith Keeler se movimentam na fila do sopão. Parece uma cena de teatro, não de TV. Já na HQ há personagens secundários que quebram o ritmo por não acrescentarem muito à trama principal, como o zelador (e não Edith Keeler) que surpreende Kirk e Spock no porão do abrigo, ou o veterano de guerra que vende maçãs e informações a Kirk sobre a localização de Beckwith. Aqui ambas perdem ponto.
     Sobre Edith Keeler: embora seja muito parecida nas duas mídias, a versão live action da TV lhe deu mais graça e vivacidade. Também a forma como Kirk se envolve com ela ganhou nuances mais sutis, delicadas, enquanto na HQ esse envolvimento adquire uma intensidade e uma brusquidão estranhas, a ponto de gerar uma verdadeira “discussão de relação” entre Kirk e Spock. A propósito, o Spock da HQ tem algumas reações emocionais negativas, de rancor e desprezo, que não combinam com a conduta que o consagrou junto aos fãs da franquia. Ponto para a TV nisso.
     Por outro lado, a HQ acrescenta outro elemento que faria grande sucesso nos dias de hoje: confundido com um chinês, Spock é vítima de racismo explícito assim que desembarca em 1930, mostrando que esse tipo de recurso é usado como arma sempre que um grupo se vê na situação de “se a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Em 1930, a Grande Depressão; nos dias de hoje, as levas de refugiados das guerras no Oriente Médio invadindo a Europa. Ponto para ela.
     Não vou comentar sobre o clímax dramático que ocorre na solução final da trama, que até hoje me traz lágrimas aos olhos, porque em nenhuma das duas mídias esse final merece um spoiler. Entretanto, devo declarar que um pequeno detalhe, que difere um final do outro, me faz dar DEZ pontos para a versão televisiva, em vez da versão em quadrinhos. É ler e conferir. Nesse ponto, Roddenberry brilhou. Nem o castigo digno de um Prometeu que recai sobre o vilão Beckwith me faz reverter esse ponto para a HQ.

     Minha conclusão é de que ambas as versões, a de Ellison e a de Roddenberry, merecem ser conhecidas pelos fãs e pelos não-fãs de Jornada nas Estrelas. Ambas foram premiadas com todo mérito em seu tempo. A despeito do rompimento entre os autores, as duas obras se unem, potencializando as qualidades uma da outra, para elevar  “A Cidade à Beira da Eternidade” e os gênios por trás de sua criação ao patamar de imortais, através de suas obras-primas. Perca isso, leitor, e você merece uma estadia prolongada na prisão klingon de Rura-Penthe.